Em Roda Viva (1967), sua primeira peça, Chico Buarque de Hollanda foi buscar o tema em si mesmo: desmistificava a engrenagem que transformara um jovem cantor num ídolo destinado ao consumo. Um pedaço de fígado era devorado pelos atores, símbolo de uma antropofagia que devora o próprio autor. Chico Buarque balançava com fúria sua imagem de cantor romântico, inocente e puro. Devolvia ao público o retrato falso que faziam dele: sua experiência cotidiana servia de material para um texto superficial e mal estruturado, que o encenador, José Celso Martinez, assumiu até suas últimas conseqüências, aprofundando a raiva latente, em embrião. O espetáculo foi um marco do chamado “teatro de agressão”. Roda Viva foi um dos maiores êxitos de bilheteria da época. Agredia determinada parte do público (certamente também os que hoje o mencionam para atacá-lo ou para chamá-lo de elitista), mas foi prestigiado pela maioria. E transformou-se num ponto de referencia para qualquer reflexão critica sobre os caminhos do teatro no Brasil na última década.
A segunda peça, escrita com Ruy Guerra, foi Calabar (1973). O tema é mais amplo e a estrutura possui extraordinário vigor poético. Um episódio da invasão dos holandeses no Brasil serve de ponto de partida para a reflexão mais ampla sobre o significado da traição, o sentido do movimento transformador da História.
O terceiro texto de Chico Buarque, desta vez escrito com Paulo Pontes, amplia a verdadeira intenção do segundo: seu alvo é a realidade brasileira de hoje (década de 70, a ditadura pós-64 e o fim da farsa que foi o chamado “milagre brasileiro”). Antes sonhada através de fatos históricos, agora diretamente confrontada.
Gota d’Água(1975) mostra definitivamente um dramaturgo preocupado com a busca de um teatro popular nacional, interessado em pesquisar o significado que a música pode assumir no espetáculo, tendo a coragem de transformar um clássico da literatura dramática universal num texto atual, vigoroso, com um diálogo que incorpora a gíria com segurança e autodomínio. A trajetória de Paulo Pontes (a partir de Opinião, passando por Um edifício chamado 200), como dramaturgo, atinge também aqui seu ponto mais expressivo até o momento. O texto pertence aos dois (nem mesmo eles conseguem separar o trabalho de um e de outro, pois possuem um sentido real e concreto do trabalho em equipe) como Calabar pertence inseparavelmente a Chico Buarque e Ruy Guerra.
A Medéia grega
O poeta Arquimedes (época desconhecida) lançou uma maldição: “Não queiras percorrer, poeta, a mesma / estrada que Eurípedes trilhou (...) / Parece fácil à primeira vista, / transitável, mas se alguém tenta pisá-la, / vê que é mais árdua do que se estivesse / pavimentada de estacas pontiagudas. / Experimenta apenas retocar / o terreno de Medeia, filha de Aietes! / Sentir-te-ás anônimo e rasteiro. / Afasta as tuas mãos da coroa de Eurípedes!”. Chico Buarque e Paulo Pontes não afastaram as mãos. Ignoraram a ameaçadora advertência. E nos demonstraram que acabaram-se os tempos das maldições e das coroas.
O texto de Eurípedes foi para Chico Buarque e Paulo Pontes, o ponto de partida. O poeta grego buscou seu tema numa lenda mitológica. Que ele transforma segundo sua visão. E segundo seu tempo. É verdade que a autoridade de Aristóteles na sua Poética aponta Eurípedes como “o mais trágico de todos os poetas” (ARISTÓTELES, 1979:252). Mas ele não possui o vigor avassalador de Ésquilo ou Sófocles. Talvez por ter dúvidas. Eurípedes atribui, em seus textos, um papel mais decisivo ao homem na trajetória de seu destino. Ainda para a fatalidade como determinante, mas Medéia é razoavelmente responsável por seus atos: a vingança é sua. Não age em nome dos deuses. Jasão ter traído se juramento de felicidade é grave e imperdoável não porque ofende os deuses, mas porque ofende a ela. Ainda que nos versos finais – o que, aliás, repete em muitas de suas peças -, Eurípedes viesse lembrar de que Zeus, do Olímpo, dirige os acontecimentos e a vida dos homens, e muitas vezes nos deixa perplexos na realização de sua vontade. A tragédia de Eurípedes mostra a vingança do ódio e da humilhação (Medéia) contra um homem (Jasão) que antes lhe despertou um amor cego e absoluto e que agora abandona-a pela escalada do poder. Vinda de uma região primitiva, com conhecimentos de feitiçaria, Medéia afirma que geralmente “a mulher é temerosa, covarde para a luta e fraca para as armas, mas tendo sido lesada em seus direitos no leito conjugal, torna-se a mais sanguinária das criaturas”. Ela será a demonstração do que diz. Quando a peça começa já está mergulhada no sofrimento e no desespero. Quando ganha o prazo de um dia para abandonar as terras onde vive desde que Jasão trouxe-a com ele (propriedade do pai da futura esposa de seu ex-marido), sonha com três cadáveres: pretende exterminar o pai, a filha e o marido. No final, conseguindo matar os dois primeiros com o feitiço que seus próprios filhos levam às núpcias, assassina as duas crianças, mesmo sofrendo com isso, para fazer Jasão sofrer ainda mais. Realizada sua terrível vingança, consegue fugir, triunfante, num carro do sol (segundo a lenda, Medéia era neta do sol/hélio). Portanto, com a ajuda dos deuses. O texto é direto, seco, objetivo. E maravilhosamente belo!!!
Medéia é a tragédia do amor transmutado em ódio mortal. Fruto de uma tremenda ingratidão. A figura demoníaca de Medéia vinha atraindo Eurípedes desde 455 a. C., quando em suas pelíades apresentou a “bruxa” que destruiu o velho Pélias (ROMILLY, 1998). Até nós, porém, chegou somente a gigantesca tragédia Medeia, encenada em 431 a.C., peça em que Eurípedes chegou à perfeição em mostrar que a “moira” já estava em processo de esgotamento simbólico e que o destino do homem nasce do “demônio” que habita em seu peito, afinal: “paixão é mais forte que a razão” (ROMILLY, 1998: 112). Nesta peça, Medéia apresenta-se, sobretudo como mulher que resolve opor à ofensa de seu leito conjugal e à dor o transbordamento de sua paixão. Como acertadamente argumenta Albin Lesky, no decorrer da ação esquecemos a feiticeira e suas magias, e nos voltamos inteiros para a mulher, para a pessoa humana, para a “demoníaca medeia”, que Eurípedes transformou em assassina dos próprios filhos (LESKY, 1971:171). Muito se tem discutido acerca da figura de Medeia, com referencia ao que Aristóteles, na sua Poética denominou de herói. Não podendo este ser alguém muito bom, que passe da felicidade à infelicidade, porque seria revoltante, nem tampouco um “vilão”, que passe da desgraça para a felicidade, porque seria edificante, mas não seria trágico, o herói terá que estar no meio-termo, inclinar-se mais para o lado bom que para o mau e encontrar sua ruína em alguma “falta cometida”. Ora, Medéia, em hipótese alguma, preenche esse meio-termo, não satisfazendo, por conseguinte, à doutrina aristotélica (ARISTÓTELES, 1979). Muito oportuno é o comentário de Rachel Gazolla: “Tratada como heroína autenticamente trágica, no sentido aristotélico, ela não produzirá efeito” (GAZOLLA, 2001:122). Seria impossível, na realidade, conceber como herói trágico, dentro dos moldes aristotélicos, alguém que não seja “como nós”, porque não se pode sentir “terror” e “piedade” por esse tipo de personagem. Arrebatada, cruel, extremada e sanguinária, Medéia é uma “figura trágica” muito mais que uma heroína trágica. Talvez mais uma “vítima trágica” que um “agente trágico”, o que, aliás, está nos planos de Eurípedes, cujo drama tem uma razão de ser num mundo de paixões, misérias e loucuras.
Desde o prólogo, recitado pela ama, Eurípedes nos dá um retrato terrível da situação de Medéia: ora explode em lamentações selvagens, ora fecha-se no silêncio de sua dor e o olhar de ódio com que contempla os filhos e que faz a ama estremecer num estranho pressentimento do que está por acontecer e que fica explicito desde o inicio da tragédia. A tensão aumenta, quando chega o preceptor com as crianças e confidencia à ama que Creonte, segundo ouviu dizer, vai banir Medéia e os filhos da cidade de Corinto. A preocupação vai num crescendo no espírito da ama. Ela conhece bem a princesa da Cólquida. Logo de inicio fica bem claro que Eurípedes, nesta peça, sobretudo, é um mestre na arte de preparar o espectador ou o leitor para a “progressão demoníaca” do caráter de Medéia. O coro, que entra em cena, procura traduzir a dor da esposa de Jasão e hipoteca-lhe, embora timidamente, a sua solidariedade. A intervenção do coro faz com que Medéia lhe fale de suas desventuras. Depois, esquecendo-se, por uns momentos, de si própria, passa do particular ao geral, e disserta sobre a triste situação social da mulher no século V a.C. O fecho da fala equilibrada da personagem é uma ameaça a Jasão. Com a entrada do frio personagem esposo da “heroína desgraçada”, dar-se inicio ao “agón”, o formidável combate da peça. À sua frente posta-se Medéia, fervendo em ódio. Jasão, que não ama coisa alguma, continua gélido. Trata-se de um cínico que mais parece ter freqüentado os discursos dos Sofistas e aprendeu perfeitamente a técnica verbosa, mas vazia. Seu raciocínio é perfeito, até no paradoxo: vai se casar com creusa para salvar Medéia da ira de Creonte e para o bem dos filhos! Ele será rei e os filhos, de exilados, tornar-se-ão príncipes. Quanto a Medéia, ele, de fato, lhe deve alguma coisa, mas se o amor tem que ser agradecido, os agradecimentos devem ser feitos a Afrodite, que fez a esposa apaixonar-se por ele. O amor é gratuito ou não existe! Medéia já foi recompensada: tem o privilégio de residir não mais em terra bárbara, mas na Grécia, terra da justiça. De qualquer forma, está disposto a ajudá-la: com “mão liberal” lhe dará dinheiro e fará recomendações a amigos. Aqui está instalada a tão violenta “luta antagônica” dessas forças que, por algumas vezes, a mãe infortunada modificou sua decisão. Medéia vê o olhar tranqüilo e o sorriso manso de seus filhos e é tomada por estranha perplexidade. Mas, no fim, vence-a o “demônio” que lhe habita o peito. Quão distante esta Ésquilo e Sófocles do estilo trágico de Eurípedes. Em Medéia fica claro que dicotomia não é mais entre deus e homem, mas no coração errante do ser humano (ROMILLY, 1998). Todo o restante da tragédia se desenrola linearmente, como uma absoluta necessidade fatídica. A longa fala do mensageiro, narrando pormenorizadamente a morte terrivelmente dolorosa de Creusa e do rei Creonte, enche Medéia de um “júbilo satânico”. Uma última palavra ao coro, tentando justificar seu ato, e um derradeiro monólogo, em que a desventurada mãe fala com sua própria mão e tudo se consumou. O grito de morte de duas crianças em meio a soluços do coro, a chegada, tarde demais, de Jasão, para salvá-las e a fuga de Medéia num carro alado, enviado pelo deus hélio. Um autêntico deus ex machina, criticado radicalmente por Aristóteles na Poética. Na realidade, se o fecho é artificial e fora das normas aristotélicas, ele está em conformidade com a “revelação final do pensamento de Eurípedes” (VERNANT & NAQUET, 2003). Medéia não é apenas esposa sanguinária e vingativa, mas uma figura que personifica as forças cegas e irracionais da natureza. Como brilhantemente afirma Jacqueline de Romilly: “Medéia é o drama da mulher abandonada... ela é paixão personificada” (ROMILLY, 1998:112).
A Medéia brasileira
Gota d’Água (1975) retoma inúmeras colocações do texto de Eurípedes. Mas sem submissão. Chico Buarque e Paulo Pontes conseguem reter o fundamento trágico do original grego, mas realizam, em todos os sentidos, uma adaptação conseqüente. Gota d’Água possui a rigidez de uma tragédia clássica mas atesta o significado da recriação inteligente. Uma mulher traída que assassina os filhos e suicida-se para se vingar do ex-amante. Até aí a aproximação seria apenas mecânica e bastante fácil. Também substituir os deuses pela ordem social que comanda o comportamento e o caminho dos homens, não tem em si, como proposta, nada de profundamente original. Encontrar na macumba brasileira uma correspondência ao feitiço das religiões primitivas de antes de Cristo igualmente não nos coloca diante de nenhuma reinvenção em certo sentido são simplificadoras. O que Gota d’Água afirma com extraordinária eloqüência, e o que propõe para um debate implacável e impiedoso.
O tema da peça é o choque ideológico. Nesse sentido é preciso reconhecer a grande vitória do texto. Por exemplo: todo o comportamento, e suas conseqüências no plano social, de Egeu, homem que está ao lado da justiça e da verdade, que possui uma clara compreensão do tipo de submissão e de mistificação em que vivem os manipulados moradores do conjunto residencial do subúrbio da peça. Seria o herói, o personagem que traz a verdade, que atira com êxito á frente dos demais. Hoje ele continua a “representar” a verdade, mas é um personagem secundário. Ou aparentemente secundário. Esse deslocamento é significativo. Ainda que sua presença, na peça ou na vida social de hoje, seja o aspecto fundamental da possível transformação. Ele fala, os outros não compreendem ou negam. Sua reivindicação é incomoda ou quase solitária. Assim, Egeu explica tudo à personagem Joana (Medéia), uma mulher radical (e perdida no radicalismo que conduz apenas ao suicídio e ao ato final). E explica também ao público, didaticamente, o tipo de relação a Egeu, ou ao comportamento destes, entre eles e em relação a Egeu, ou ao comportamento exacerbado emocionalmente, e descontrolado, de Joana, são pontos chaves da compreensão do texto de Chico Buarque e Paulo Pontes.
Gota d’Água apanha o tema clássico para colocá-lo a serviço de uma reflexão mais ampla.
Assim o choque entre a ascensão social de Jasão e a violência cega e sofrida de Joana, diante dos poderosos, Creonte e sua filha Alma, são sem dúvida alguns dos conflitos básicos da peça. Mas esta não se resume nisto. Vai mais além. Mergulha com mais decisão num tipo de estudo ainda embrionário e talvez limitado, mais vigoroso. A tragédia maior é outra: é preciso encontrá-la na inter-relação dos personagens.
Num momento em que o teatro brasileiro se debatia em quase agonia (década de 70), Gota d’Água inundava o palco com postura critica que procurava revelar a realidade em suas contradições básicas, elucidando-as, assumindo um ponto de vista popular e nacional. Entregando ao teatro do país seu maior momento como texto dinâmico em versos. Mas, diante de Gota d’Água será necessário não nos limitarmos a um reconhecimento, sem dúvida justo, do trabalho literário e teatral rigoroso e sensível de dois autores possuidores de extenso talento para a literatura e o teatro. É preciso, sobretudo recolocar em debate a realidade e seus laços, suas armadilhas, suas nuances. O choque ideológico que o texto evidencia e a postura de discussão que revitaliza, fazem de Gota d’Água mais que um simples texto teatral de qualidade. Essa tragédia nacional-popular é um depoimento político e um incentivo ao debate democrático. A tragédia grega nasceu e floresceu no horizonte da democracia grega, a tragédia de Chico Buarque e Paulo Pontes nasceu como luta por um horizonte democrático num Brasil que vivia numa brutal e reacionária ditadura militar.
BIBLIOGRAFIA
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Professor no Departamento de Filosofia na Universidade Federal de Sergipe/GEFELIT